Roteiro 1 e 2

Origens históricas de nossa gente e praças e avenidas do xadrez central

Construído no século 19, o Sobrado Dr. José Lourenço mantém sua arquitetura original Foto: Igor de Melo

Num Centro praticamente vazio, a cidade de Fortaleza consegue se mostrar. Quem passa por ali num dia de domingo, com um olhar tranquilo, consegue ver as várias nuances que a multidão teima em deixar cobertas nos dias mais movimentados, como as manhãs de sábado.

Observe, por exemplo, aquilo que hoje são as lojas. Apesar de a maioria dos prédios se esconderem por trás de fachadas, um bom observador consegue enxergar os casarões que serviram de residência. Muitos não são conservados, mas alguns ainda mantêm a arquitetura original. O Sobrado Dr. José Lourenço – onde funcionam museu, café e biblioteca -, na rua Major Facundo, é um exemplo. Ele é um pequeno palacete de três pisos, construído por um médico de mesmo nome, no fim do século 19.

Ainda hoje, existem os persistentes que moram no Centro. Maria Lúcia Sebastiana, dona de um bar, sequer precisa pegar ônibus: em cada rua, ela consegue resolver uma questão bancária, consultas médicas, comprar roupa ou móvel. Moradores como esses, e outras 24 mil pessoas, são resistentes em habitar o Centro de Fortaleza, são apegados a ele e dele não desejam sair. “Aqui no Centro, é bom demais. Tudo a gente resolve perto”. A fala de Maria Lúcia demonstra bem o Centro como um local de ocupação comercial e para serviços essenciais.

Não existe consenso em relação a um local considerado marco zero para a cidade, ou seja, em que local começou a se constituir Fortaleza. Centro e Barra do Ceará disputam esse marco. Entretanto, aglomerações de moradia, comércio e serviços, definição de bairro, são características bem mais presentes no Centro que na Barra do Ceará da época da colonização.

É registrada na história a construção do Fortin Santiago, em julho de 1604, pelo militar açoriano, radicado na Paraíba, Pero Coelho. Ele foi donatário da capitania do Siará Grande, a partir de 1603. Estava em sua companhia um jovem que viria a ser imortalizado na obra de um cearense ilustre, que foi o escritor José de Alencar, o militar Martim Soares Moreno. Na viagem, o aprendizado foi grande, tanto que o “guerreiro branco” será um dos grandes colonizadores do nosso Estado.

Foi ao redor do antigo forte de Schoonenborch, construído pelos holandeses, reformado pelos portugueses e rebatizado de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que foram construídas as primeiras moradas. O Forte, hoje, é a 10ª Região Militar do Estado do Ceará, Piauí e Maranhão, local de plena atividade, no Centro, com arquitetura preservada ainda do período colonial.

O Centro já concentrou as moradias da maioria dos fortalezenses. Com o crescimento e desenvolvimento, comércio e serviços tomaram conta da região. Em volta dos casarões e hotéis elegantes e abastados, pequenas residências conviviam e foram transformadas em lojas e shoppings. Até meados do século XX (1950), o Centro ainda se configurava como um bairro presidencial.

“As pessoas se incomodavam primeiro com o barulho, o amontoado de gente e procuraram a Jacarecanga”, descreve o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará, José Borzaquiello. O bairro começou a surgir logo depois do Centro, como uma alternativa para a elite. Ainda hoje, casarões estão erguidos na região, que fica do lado oeste do bairro central. Como a Jacarecanga passou a concentrar fábricas, o lado leste virou alternativa. Assim, surgiu a Aldeota.

Na ida para a Aldeota, a preocupação da elite era não viver próximo às fábricas. Segundo o professor Macêdo Filho, a Aldeota concentrava uma maior quantidade de ventos, o que tornava o bairro mais agradável. Comisso, a elite fortalezense foi migrando primeiro para o Jacarecanga e, em seguida, para a Aldeota.

“A direção dos ventos no sentido leste-oeste assinalava orientações dos higienistas sobre a conveniência de instalar moradias em regiões de barlavento, reservando os trechos de sotavento para equipamentos e serviços cujos subprodutos pudessem gerar malefícios à saúde”, aponta Macêdo Filho.

Sede da Prefeitura Municipal, o Paço Municipal ainda hoje é conhecido pela alcunha de Palácio do Bispo Foto: Dário Gabriel

Fortaleza tinha tudo para não vingar

Segundo alguns historiadores, a cidade de Fortaleza tinha tudo para não vingar. Esquecida, miserável, ninguém lhe dava cabimento. O pequeno vilarejo que surgia em volta da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção sequer era representativo em sua região. “Fortaleza era periférica em relação à própria capitania. E o Ceará tinha um papel absolutamente secundário para a economia colonial”, revela o professor do Antônio Luiz Macêdo Filho.

Que trilhos, então, fizeram com que o povoado se tornasse a quinta maior capital em população e uma das maiores economias do País? Os principais critérios, na avaliação do professor Macêdo, estão ligados à emancipação política do Ceará, quando pôde se desvencilhar de Pernambuco, e à privilegiada localização de Fortaleza.

Por ter vasto litoral, a cidade passou a receber a maior parte dos artigos de exportação e importação. “Fortaleza, até as primeiras décadas do século XIX, era um aglomerado humano sem maior expressão, com suas choupanas de palha e poucos edifícios de destaque”, confirma o professor da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFC, Romeu Duarte. O povoado que começava a surgir ao redor da fortaleza foi ganhando corpo e brios a partir da emancipação política do Ceará.

O bairro reúne parte significativa da história da cidade, em suas ruas de traçado xadrez, herdado do projeto do engenheiro militar José da Silva Paulet, feito em 1812. A expansão para os bairros Benfica, Jacarecanga e Aldeota tentaram, ainda, dar continuidade ao traçado. Com o inchaço da cidade, principalmente a partir do êxodo rural provocado pelos constantes períodos de seca, ficou difícil manter esse formato.

Ainda hoje, podemos dizer que Fortaleza é cidade “adolescente”. Quando alguns municípios do Brasil já afloravam em desenvolvimento, a Capital ainda dava seus primeiros passos. A cidade tem apenas 286 anos, completados em 2012. Quando Fortaleza ainda era chamada de vila, as cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife já estavam em pleno desenvolvimento.

Além do vasto litoral, outro importante elemento que proporcionou desenvolvimento a Fortaleza foi o riacho Pajeú. Aterrado e praticamente desaparecido, ainda é possível encontrá-lo no Parque Pajeú, da avenida Dom Manuel; no bosque Dom Delgado, no Paço Municipal; e já no Mucuripe, onde deságua no mar. Ali, as pessoas tinham água potável para beber e cozinhar.

Foi às margens do Riacho Pajeú que se desenvolveu o palacete de arquitetura mista e, para os padrões de Fortaleza, antigo.

Palácio do Bispo

Na boca do povo e de quem viveu sobre seu piso de madeira vermelha, o prédio ainda hoje é conhecido como Palácio do Bispo. A alcunha é pelo fato de o local ter abrigado, por mais de 100 anos, de 1860 a 1973, a residência episcopal. Serviu de morada aos bispos e padres, além dos seminaristas que recebiam as aulas religiosas em seus aposentos. Localizado num terreno atrás da Catedral Metropolitana de Fortaleza, na rua São José, o Palácio passou do poder religioso ao poder público municipal e, hoje, é a sede da Prefeitura Municipal de Fortaleza.

“Do nosso passado arquitetônico, ele é um prédio raro, embora não muito antigo do ponto de vista histórico. Não tem nem 200 anos. Porém, em termos de Fortaleza, é um dos mais antigos”, direciona o historiador Antônio Luiz Macêdo.

No século XIX, mesmo com a expressão econômica da cidade diminuta, começavam a proliferar as edificações de alvenaria, mais passíveis de preservação. Construções mais modestas e abundantes, de madeira trançada, não tiveram como resistir ao tempo.

A partir de novembro de 1973, o casarão foi palco das decisões políticas dos prefeitos de Fortaleza, mas foi deixado de lado em 1991, no primeiro mandato do então prefeito Juraci Magalhães. O resultado foi o total esquecimento da manutenção do equipamento durante esse período, ocupado por algumas secretarias municipais. Em 2005, entretanto, já na gestão da prefeita Luizianne Lins, o prédio foi tombado, o que, entretanto, não significou uma restauração imediata. Somente três anos depois, o projeto de dar nova vida ao edifício lança os primeiros pilares.

O que nem todo mundo sabe é que o Paço Municipal não preservou sua fachada original. Ao logo dos anos, e dos diferentes usos que foram dados à edificação, ele foi sendo modificado. Segundo Ivone Cordeiro, coordenadora de Patrimônio Histórico Cultural da Secretaria de Cultura de Fortaleza (SecultFor), ele é estruturalmente original, mas as diversas intervenções foram agregando elementos de outras concepções. “Não é um prédio inteiramente original, mas sempre manteve a mesma configuração estética e arquitetônica, mesmo agregada a outros detalhes”.

O ano era de 1866. O mês, abril. Data da venda, à Fazenda Nacional, da chácara por 60 mil réis. O casarão foi comprado para se transformar na moradia episcopal. A residência dos bispos se transferia do cruzamento das ruas Barão do Rio Branco e Guilherme Rocha para o casarão recém-adquirido, sob os comandos do primeiro bispo do Ceará, dom Luiz Antônio dos Santos.

O documento está guardado no Seminário da Prainha, aos cuidados do auxiliar administrativo Antônio Cordeiro Alves, 62 anos. Hoje funcionário da arquidiocese, seu Cordeiro, como é conhecido, é orgulhoso de preservar o material documental do Seminário. “Eu era meninote, tinha 16, 17 anos, de 1962 a 1971. Eu era dos Oblatas, que eram uns rapazes para ajudar na pastoral, os padres nas paróquias, mas não cheguei a me formar”, recorda.

Das paredes do casarão, entre uma atividade e outra, Cordeiro ouvia histórias dos bispos anteriores. A casa, depois de dom Luiz, passou aos cuidados de dom Joaquim (bispado de 1884 a 1912), que foi responsável por manter, junto à Igreja, a posse do prédio mesmo depois da Proclamação da República e da Primeira Constituição Republicana, quando a mesma Igreja perdeu a relação com o Estado.

A venda do casarão para a Prefeitura foi feita por dom José Delgado. “Aquilo não foi aceito por ninguém, nem pelo o clero”, aponta. Para conseguir vender o casarão, dom Delgado recorreu ao Vaticano, por falta de autorização local. Conseguido o apoio, passou a edificação, com área de mais de dois mil m², a Vicente Fialho por Cr$ 3.094.5000,00.

Dom Delgado alegou “a pobreza da arquidiocese, que não suportava o ônus da sustentação do patrimônio, aos ecos do Concílio Vaticano II, que propagava pelos quadrantes do mundo, levando aos bispos a despojar-se do poder e riqueza, a presença constante de comensais no Palácio, que obrigava as religiosas a redobrados trabalhos”, escreveu, no O POVO, em março de 1979. A justificativa era uma resposta ao artigo “Devolva-se o quanto antes à arquidiocese o histórico Palácio do Bispo!”, assinado por Daniel Carneiro Job, publicado em fevereiro, também no O POVO, no qual acusava o bispo de vender o casarão “a preço de bolo de milho em fim de festa”.

Praça do Ferreira

Até meados do século XIX, a Praça do Ferreira era só um areal com um cacimbão no centro, algumas mangabeiras e pés de castanhola. Pelas beiras, marcos de pedra para amarrar jumentos dos cargueiros ambulantes que vinham do interior. Nesse tempo, a praça era chamada de “Feira Nova” por abrigar uma feira movimentada.

Os rapazes ficavam em frente ao Cine São Luiz, aguardando as estudantes do Colégio Normal saírem das aulas. Por volta das 16 horas, as garotas normalistas, de saia rodada abaixo do joelho, costumavam passar pela Praça do Ferreira. Coincidência ou não, um vento teimoso lhes levantava as saias todos os dias nesse horário. “E era a alegria dos rapazes”, conta o então estudante e hoje aposentado João Batista de Almeida, que, na época, devia ter 17 ou 18 anos.

Assim como os causos do seu João Batista e das normalistas, pela Praça do Ferreira, a história da Cidade e dos próprios fortalezenses foi sendo desenhada. Naquele recanto, antes de 1920, existiam quatro quiosques, um em cada margem. Eles abrigavam cafés e restaurantes. O Café Elegante ficava na esquina das ruas Pedro Borges e Floriano Peixoto; o Restaurante Iracema, na rua Pedro Borges com Major Facundo; o Café do Comércio, na esquina entre as ruas Major Facundo e Guilherme Rocha; e o Café Java, na esquina das ruas Guilherme Rocha com Floriano Peixoto.

Em 1920, na gestão do prefeito Godofredo Maciel, a praça foi reformada e os quiosques, retirados. Era justamente no Café Java que se reuniam os participantes da Padaria Espiritual.

Padaria Espiritual

Num dos bancos do local conhecido como coração de Fortaleza, seu Antônio Campelo acompanhou as mudanças do Centro. Morador do bairro Jardim América, o aposentado vai, de segunda a sábado, a partir das 8 horas, ocupar um dos assentos da Praça do Ferreira. Esse percurso ele já faz há mais de 20 anos. Período suficiente para ver as mudanças daquela região da Capital.

“O que eu sei é que aqui na Praça do Ferreira tinha umas reuniões de pessoas que, hoje, são nomes de ruas e avenidas de Fortaleza”, ensina o aposentado. E ele tem razão. No fim do século 19, entre 1892 e 1898, Antônio Sales, Adolfo Caminha, Lívio Barreto, Lopes Filho, Raimundo Teófilo de Moura e muitos outros fundaram a Padaria Espiritual, uma das escolas literárias mais importantes da história do Ceará. De versos e poesias surgia “O Pão”, como chamavam o jornal, e os escritores, intitulavam-se “padeiros”. Todos os sócios, ou melhor, todos os “padeiros” assinavam seus textos com pseudônimos, assim Antônio Sales era Moacir Jurema, Adolfo Caminha era Félix Guanabarino, Lívio Barreto era Lucas Bizarro e, ao longo de toda a sua jornada, foram 34 autores, cada um com um nome específico.

O Pão era “assado”, ou seja, impresso semanalmente. Boa parte das reuniões do grupo acontecia no Café Java, ali mesmo, na Praça do Ferreira. A Padaria Espiritual contava com um divertido e criativo programa de regras, formado por 48 artigos que expressavam o pensamento e objetivos.

Irônicos e irreverentes, os participantes possuíam em seus títulos a nomenclatura hierárquica das padarias reais: o padeiro-mor (presidente), os forneiros (secretários), o gaveta (tesoureiro), os padeiros (sócios) e o forno (sede oficial da Padaria). Também traziam no peito o lema: “alimentar com pão e espírito todos os sócios e a população em geral”.

O objetivo primordial do grupo era criticar a sociedade e as instituições. Os padeiros vinham, em sua maioria, das camadas média e baixa da população e se mostravam descontentes com a classe burguesa, dentre outras coisas, pela valorização da cultura europeia.

Em um dos itens de seu programa de instalação, os padeiros declararam seu desprezo pelos estrangeirismos presentes nas obras literárias brasileiras. O forte caráter nacionalista também se reflete na proibição do uso de termos referentes à fauna e à flora estrangeiras na literatura brasileira. Essa característica repercutiu no fato de muitos historiadores e críticos literários enxergarem na Padaria Espiritual uma espécie de prenúncio do Modernismo, mesmo estando vinculadas aos fins dos oitocentos, que estão atrelados às escolas realista e simbolista, que faz surgir os olhares do nacionalismo crítico como uma de suas principais preocupações. A semana de Arte Moderna de 1922, considerada marco inicial do Modernismo no Brasil, só aconteceria quase trinta anos mais tarde.

O Professor explica

O militar Pero Coelho de Sousa, quando chega à capitania do Siará Grande, funda o forte de São Tiago, na Barra do Ceará, que para muitos foi construído onde era o antigo Clube de Regatas da Barra do Ceará, hoje o Cuca Che Guevara. Martin Soares Moreno fundou o forte de São Sebastião, que não existe mais.

A formação da Jacarecanga aconteceu no século XIX, com a fundação do Liceu, principal colégio público do Estado, e também com a chegada dos senhores ricos plantadores e negociadores de algodão, que achavam o bairro estratégico pela proximidade com o Centro, a estação e o litoral, para exportar suas mercadorias.

A colonização do Ceará foi motivada por estar sob jurisdição do Maranhão, entre 1621 e 1656, e de Pernambuco, de 1656 a 1799.

São muitos os prédios antigos de Fortaleza. Pode-se destacar: Seminário da Prainha, Santa Casa de Misericórdia e Cadeia Pública (hoje Emcetur).

O primeiro prefeito da cidade a governar nessa nova sede, em 1973, foi o tauaense Vicente Fialho, hoje tradicional político brasileiro.

A origem do atual nome da praça vem do famoso boticário Antônio Rodrigues Ferreira, que mantinha uma botica na rua das Palmas, hoje, Major Facundo. Esse comércio virou uma referência de encontros célebres da localidade.

Muitas referências são feitas à Padaria Espiritual como uma agremiação levemente anarquista, por causa de suas inovações, combates ao tradicionalismo. Antônio Sales dizia que seus integrantes eram “proletários intelectuais”.

Comentários do professor André Rosa